quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Iale Campos

O
povo
brasileiro



Ficha Bibliográfica: Ribeiro, Darcy. O Povo brasileiro. Questões abertas: A formação e o sentido do Brasil. 2º edição.


O Novo Mundo
(Páginas 19 á 41)

• Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais. Díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a um povo novo (Ribeiro 1970), num novo modelo de estruturação societária. (pág. 19)

• A confluência de tantas e tão variadas matrizes formadoras poderia ter resultado numa sociedade multiétnica, dilacerada pela oposição de componentes diferenciados e imiscíveis. (pág. 20)

• O que tenham os brasileiros de singular em relação aos portugueses decorre das qualidades diferenciadoras oriundas de suas matrizes indígenas e africanas; da proporção particular em que elas se congregaram no Brasil; das condições ambientais que enfrentaram aqui e, ainda, da natureza dos objetivos de produção que as engajou e reuniu. (pág. 20)

• A urbanização, apesar de criar muitos modos citadinos de ser, contribuiu para ainda. Mais uniformizar os brasileiros no plano cultural, sem, contudo, borrar suas diferenças. A industrialização, enquanto gênero de vida que cria suas próprias paisagens humanas plasmou ilhas fabris em suas regiões. As novas formas de comunicação de massa estão funcionando ativamente como difusoras e uniformizadoras de novas formas e estilos culturais. (pág. 21)

• Essa unidade resultou de um processo continuado e violento de unificação política, logrado mediante um esforço deliberado de supressão de toda identidade étnica discrepante e de repressão e opressão de toda tendência virtualmente separatista. Inclusive de movimentos sociais que aspiravam fundamentalmente edificar uma sociedade mais aberta e solidária. (pág. 23)

• A façanha que representou o processo de fusão racial e cultural é negada, desse modo, no nível aparentemente mais fluido das relações sociais, opondo à unidade de um denominador cultural comum, com que se identifica um povo de 160 milhões de habitantes, a dilaceração desse mesmo povo por uma estratificação classista de nítido colorido racial e do tipo mais cruamente desigualitário que se possa conceber. (pág. 24)


• O grande desafio que o Brasil enfrenta é alcançar a necessária lucidez para concatenar essas energias e orientá-las politicamente, com clara consciência dos riscos de retrocessos e das possibilidades de liberação que elas ensejam. (pág. 25)

• Cada vez que um político nacionalista ou populista se encaminha para a revisão da institucionalidade, as classes dominantes apelam para a repressão e a força. (pág. 26)


O NOVO MUNDO

. MATRIZES ÉTNICAS.


• Nos últimos séculos, porém, índios de fala tupi, bons guerreiros, se instalaram dominadores, na imensidade da área, tanto à beira-mar, ao longo de toda a costa atlântica e pelo Amazonas acima, como subindo pelos rios principais, como o Paraguai, o Guaporé, o Tapajós, até suas nascentes. (pág. 29)

• No plano étnico-cultural, essa transfiguração se dá pela gestação de uma etnia nova, que foi unificando, na língua e nos costumes, os índios desengajados de seu viver gentílico, os negros trazidos de África, e os europeus aqui guerenciados. Era o brasileiro que surgia, construído com os tijolos dessas matrizes à medida que elas iam sendo desfeitas. (pág. 30)

• Na escala da evolução cultural, os povos Tupi davam os primeiros passos da revolução agrícola, superando assim a condição paleolítica, tal como ocorrera pela primeira vez, há 10 mil anos, com os povos do velho mundo. (pág. 31)

• Daí a importância dos sítios privilegiados, onde a caça e a pesca abundantes garantiam com maior regularidade a sobrevivência do grupo e permitiam manter aldeamentos maiores. (pág. 32)

• Um dos cronistas da expansão civilizatória sobre seus territórios nos diz, claramente, que "pouco faltou para que exterminassem todos os espanhóis do Paraguai" (Félix de Azara apud Holanda 1986:70). Francisco Rodrigues do Prado (1839: I, 15), membro da Comissão de Limites da América hispânica e da portuguesa, avaliou em 4 mil o número de paulistas mortos por eles ao longo das vias de comunicação com Cuiabá. (pág. 35)

• Ao contrário dos povos que aqui encontraram, todos eles estruturados em tribos autônomas, autárquicas e não estratificadas em classes, o enxame de invasores era a presença local avançada de uma vasta e vetusta civilização urbana e classista. (pág. 37)

• Era a humanidade mesma que entrava noutra instância de sua existência, na qual se extinguiriam milhares de povos, com suas línguas e culturas próprias e singulares, para dar nascimento às macroetnias maiores e mais abrangentes que jamais se viu. (pág. 39)


O ENFRENTAMENTO DOS MUNDOS


• Os índios perceberam a chegada do europeu como um acontecimento espantoso, só assimilável em sua visão mítica do mundo. Seriam gente de seu deus sol, o criador - Maíra -, que vinha milagrosamente sobre as ondas do mar grosso. Não havia como interpretar seus desígnios, tanto podiam ser ferozes como pacíficos espoliadores ou dadores. (pág. 42)

• Esse foi o primeiro efeito do encontro fatal que aqui se dera. Ao longo das praias brasileiras de 1500, se defrontaram, pasmos de se verem uns aos outros tal qual eram, a selvageria e a civilização. Suas concepções, não só diferentes, mas opostas, do mundo, da vida, da morte, do amor, se chocaram cruamente. Os navegantes, barbudos, hirsutos, fedentos de meses de navegação oceânica, escalavrados de feridas do escorbuto, olhavam, em espanto, o que parecia ser a inocência e a beleza encarnadas. Os índios, vestidos da nudez emplumada, esplêndidos de vigor e de beleza, tapando as ventas contra a pestilência, viam, ainda mais pasmos, aqueles seres que saíam do mar. (pág. 44)

• Aos olhos dos índios, os oriundos do mar oceano pareciam aflitos demais. Por que se afanavam tanto em seus fazimentos? Por que acumulavam tudo, gostando mais de tomar e reter do que de dar, intercambiar? Sua sofreguidão seria inverossímil se não fosse tão visível no empenho de juntar toras de pau vermelho, como se estivessem condenados, para sobreviver, a alcançá-las e embarcá-las incansavelmente? Temeriam eles, acaso, que as florestas fossem acabar e, com elas, as aves e as caças? Que os rios e o mar fossem secar, matando os peixes todos?(pág. 45 e 46)

• Para os índios, a vida era uma tranqüila fruição da existência, num mundo dadivoso e numa sociedade solidária. Claro que tinham suas lutas, suas guerras. Mas todas concatenadas, como prélios, em que se exerciam valentes. (pág. 47)

• Frente à invasão européia, os índios defenderam até o limite possível seu modo de ser e de viver. Sobretudo depois de perderem as ilusões dos primeiros contatos pacíficos, quando perceberam que a submissão ao invasor representava sua desumanização como bestas de carga. Nesse conflito de vida ou morte, os índios de um lado e os colonizadores do outro punham todas as suas energias, armas e astúcias. (pág. 49)

• Em poucas décadas desapareceram as povoações indígenas que as caravelas do descobrimento encontraram por toda a costa brasileira e os primeiros cronistas contemplaram maravilhados. Em seu lugar haviam se instalado três tipos novos de povoações. O primeiro e principal, formado pelas concentrações de escravos africanos dos engenhos e portos. Outro disperso pelos vilarejos e sítios da costa ou pelos campos de criação de gado, formado principalmente por mamelucos e brancos pobres. O terceiro esteve constituído pelos índios incorporados à empresa colonial como escravos de outros núcleos ou concentrados nas aldeias, algumas das quais conservavam sua autonomia, enquanto outras eram regidas por missionários. (pág. 53)

• A Coroa portuguesa apoiou nominalmente os missionários, embora jamais negasse autorização para as "guerras justas", reclamadas pelo colono para aprisionar e escravizar tanto os índios bravos e hostis como os simplesmente arredios. (pág. 53)

• Também foi evidentemente nefasto o papel dos jesuítas, retirando os índios de suas aldeias dispersas para concentrá-los nas reduções, onde, além de servirem aos padres e não a si mesmos e de morrerem nas guerras dos portugueses contra os índios hostis, eram facilmente vitimados pelas pragas de que eles próprios, sem querer, os contaminavam. (pág. 55)

• Aqueles índios, tão diferentes dos europeus, que os viam e os descreviam, mas também tão semelhantes, seriam eles também membros do gênero humano, feitos do mesmo barro pelas mãos de Deus, à sua imagem e semelhança? Caíram na impiedade. (pág. 57)

• A tarefa a que os missionários se propunham não era transplantar os modos europeus de ser e de viver para o Novo Mundo. Era, ao contrário, recriar aqui o humano, desenvolvendo suas melhores potencialidades, para implantar, afinal, uma sociedade solidária, igualitária, orante e pia, nas bases sonhadas pelos profetas. Essa utopia socialista e seráfica floresce nas Américas, recorrendo às tradições do cristianismo primitivo e às mais generosas profecias messiânicas. (pág. 60 e 61)

• A utopia jesuítica esboroou e os inacianos foram expulsos das Américas, entregando, inermes, desvirilizados, os seus catecúmenos ao sacrifício e à escravidão na mão possessa dos colonos. O mesmo aconteceu com o sonho mirífico dos franciscanos, reduzido à visão do que era a boçalidade do mundo colonial, ínvio, ímpio e bruto. (pág. 62)



MOINHOS DE GASTAR GENTE


OS BRASILÍNDIOS

• A expansão do domínio português terra adentro, na constituição do Brasil, é obra dos brasilíndios ou mamelucos. Gerados por pais brancos, a maioria deles lusitanos, sobre mulheres índias, dilataram o domínio português exorbitando a dação de papel das Tordesilhas, excedendo a tudo que se podia esperar. (pág. 106)

• Os brasilíndios foram chamados de mamelucos pelos jesuítas espanhóis horrorizados com a bruteza e desumanidade essa gente castigadora de seu gentio materno. (pág. 107)

• Friederici (1967), comparando-os com seus êmulos do Canadá, os coureurs de boi, que se multiplicaram nos primeiros séculos, supõe que não se lhes abriria outro caminho histórico senão o extermínio quando sociedades européias mais estruturadas, fundadas em famílias regulares, colonizaram aquelas áreas.É pelo menos curioso o contraste entre o desempenho histórico daqueles mateiros nortistas, vestindo roupas de couro, calçando mocassins e só falando as línguas indígenas, em comparação com a energia pungente dos mamelucos ou brasilíndios que vieram a fazer o Brasil. (pág. 109)

• Esses mateiros do norte representaram papel capital. Foram eles que devassaram o Canadá e o ocuparam até a venda do território aos ingleses. Creio que são descendentes deles os Kevekuá, que amargam uma vizinhança hostil com os anglo-canadenses que ocuparam o território, numa colonização feita por famílias regulares.
• No Brasil seu êxito foi imensamente maior, porque passaram a constituir o cerne mesmo da nação e, somando uns 14 milhões, juntamente com os negros abrasileirados, puderam suportar a invasão gringa mantendo sua cara e sua identidade. (pág. 110)


OS AFRO-BRASILEIROS


• Os negros do Brasil foram trazidos principalmente da costa ocidental africana. (pág. 114)


• A diversidade lingüística e cultural dos contingentes negros introduzidos no Brasil, somada a essas hostilidades recíprocas que eles traziam da África e à política de evitar a concentração de escravos oriundos de uma mesma etnia, nas mesmas propriedades, e até nos mesmos navios negreiros, impediu a formação de núcleos solidários que retivessem o patrimônio cultural africano. (pág. 115)

• O negro transita, assim, da condição de boçal – preso ainda à cultura autóctone e só capaz de estabelecer uma comunicação primária com os demais integrantes do novo contorno social - à condição de ladino - já mais integrado na nova sociedade e na nova cultura. (pág. 116)



OS NEOBRASILEIROS

• Ao contrário, mantinham vínculos mercantis externos para prover-se dos referidos bens em troca do seu principal artigo de exportação, que fora, inicialmente, o pau-de-tinta, depois, o índio apresado como escravo e, afinal, a produção de alguma mercadoria de exportação. Produzir essa mercadoria passou a ser sua razão de viver.
• Tal indianidade era, sem dúvida, mais aparente que real, porque o apelo às formas indígenas de adaptação à natureza, a sobrevivência das antigas tradições, o próprio uso da língua indígena, estavam postos, agora, a serviço de uma entidade nova, muito mais capaz de crescer e expandir-se. (pág. 121)

• O idioma tupi foi a língua materna de uso corrente desses neobrasileiros até meados do século XVIII. De fato, o tupi, inicialmente, se expandiu mais que o português como a língua da civilização (sobre a formação e a difusão da língua geral ver Cortesão 1958 e Holanda 1945). Com efeito, a língua geral, o nheengatu, que surge no século XVI do esforço de falar o tupi com boca de português, se difunde rapidamente como a fala principal tanto dos núcleos neobrasileiros como dos núcleos missionários. (pág. 122)


• A unidade de comando dessa estrutura do poder permitiu às comunidades nascentes crescerem e se diferenciarem, cada vez mais, num componente rural e outro urbano. (pág. 124)


OS BRASILEIROS



• O nome Brazil geralmente identificado com o pau-de-tinta é na verdade muito mais antigo. Velhas cartas e lendas do mar oceano traziam registros de uma ilha Brasil referida provavelmente por pescadores ibéricos que andavam à cata de bacalhau (cf.Gandia 1929 ). Mas ele foi quase imediatamente referido à nova terra, ainda que o governo português quisesse lhe dar no mes pios, que não pegaram. (pág. 126)


• É bem possível que ela só se tenha fixado quando a sociedade local se enriqueceu, com contribuições maciças de descendentes dos contingentes africanos, já totalmente desafricanizados pela mó aculturativa da escravidão. Esses mulatos ou eram brasileiros ou não eram nada, já que a identificação com o índio, com o africano ou com o brasilíndio era impossível. (pág. 128)

• Nesse sentido, o Brasil é a realização derradeira e penosa dessas gentes tupis, chegadas à costa atlântica um ou dois séculos antes dos portugueses, e que, desfeitas e transfiguradas, vieram dar no que somos: uns latinos tardios de além-mar,amorenados na fusão com brancos e com pretos,deculturados das tradições de suas matrizes ancestrais, mas carregando sobrevivências delas que ajudam a nos contrastar tanto com os lusitanos.Como se vê, estava constituída já uma fórmula extraordinariamente feliz de adaptação do homem ao trópico como uma civilização vinculada ao mundo português mas profundamente diferenciada dele. Sobre essa massa de neobrasileiros feitos pela transfiguração de suas matrizes é que pesaria a tarefa de fazer Brasil. (pág. 130)

O SER E A CONSCIÊNCIA


• Lamentavelmente, o processo de construção da etnia não deixa marcas reconhecíveis senão nos registros de um grupo tão exótico e ambíguo como os letrados. (pág. 133)

• Muito se fala de identidade em termos psicologísticos e filosóficos que pouco acrescentam ao fato concreto e visível: é o surgimento do brasileiro, construído por si mesmo, já plenamente ciente de que era uma gente nova e única, se não hostil pelo menos desconfiada de todas as outras.(pág. 140)


Observação: O livro "O Povo Brasileiro", lançado em 1995, foi anunciado como a obra-síntese do antropólogo Darcy Ribeiro, que ele levou exatos 30 anos para concluir.

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